Em nosso contexto bilíngue na Educação Infantil, frequentemente escapamos do título de tia, somos teacher ou miss. Mas, e do papel de tia, será que desse estamos distantes?
Já nos alertava Paulo Freire que professoras podem sim ter sobrinhos, ou seja, podem muito bem ser tias. Muitas tias também podem querer ser professoras, não há problema nisso. O que não podemos é assumir o papel de tias em nosso exercício profissional. E por que não?
Todas nós já passamos pela seguinte situação: vamos a um churrasco na chácara/na roça de um parente, tem lá algumas crianças e uma das tias fala para as irmãs e cunhadas: “descansa um pouco, vai tomar uma cerveja que eu olho os meninos” e ela leva meia dúzia de crianças no parquinho ou na piscina. Como ela se relaciona com eles, quais os tipos de intervenções que ela faz? “Menino, desce daí que você vai se machucar! Ah, se vocês não dividirem o brinquedo, eu vou tirar! Pode ficar quieto os dois, senão eu vou chamar sua mãe!” Isso parece com o que você faz ou vê no seu cotidiano?


Quando assumimos o papel de professora, não estamos só vigiando as crianças, estamos atuando conscientemente e intencionalmente na esfera pedagógica, e isso precisa ficar claro para nós e para os outros.
Bem, quando a gente defende que o papel da professora é impulsionar cada criança sob nosso cuidado para expandir seu potencial social, emocional, linguístico e cognitivo, é preciso entrar nesse papel e exercê-lo. Quando você entra em sala de aula, é preciso entrar com a profissional que você é, com seus anos de estudo, qualificação acadêmica e experiência.
“[…] você que está me lendo agora, tem todo o direito de, sendo ou pretendendo ser professora, querer ser chamada de tia ou continuar a ser.
Não pode, porém, é desconhecer as implicações escondidas na manha ideológica que envolve a redução da condição de professora à de tia.”
Paulo Freire em Tia não, professora sim
As implicações ideológicas de que nos fala Paulo Freire são muitas, mas aqui vamos trazer daquela que está conectada com a nossa concepção do que é ser professora. Freire nos fala muito nesse mesmo livro sobre a dimensão coletiva e o papel social da professora, mas vamos deixar esse assunto para outro texto. Aqui, vamos pensar em como o papel de tia pode afetar nossa prática cotidiana.


Sabemos o quanto a nossa profissão é desvalorizada no Brasil, sendo as professoras de Educação Infantil as mais desvalorizadas dentro da categoria, talvez com as professoras do bilíngue tendo uma colher de chá por apresentarem uma possibilidade percebida como de maior prestígio. Mas, se nos colocamos como tias, devemos trabalhar por amor, por vocação, pelas crianças. No lugar de tias, somos as “irmãs das mães” e as substituímos em sua ausência.
Para ser tia, não é necessário boa formação, não precisa de um bom pagamento, não precisa de planejamento, não precisa de reflexão, não precisa de espaços de trocas coletivas, afinal, você não está fazendo nada de mais, está apenas “olhando” as crianças.
Quando assumimos para nós mesmas o papel de tia, estamos tirando de nós o peso de nos tornar responsáveis pelo desenvolvimento da criança e sua relação com a aprendizagem. Se elas chegam ao final do dia sem se machucar e mais ou menos limpas, já cumprimos nossa função, quando na verdade deveríamos pensar em quais conhecimentos, incluindo sempre o socioemocional, foi construído naquele dia por meio da mediação.
Isso está muito relacionado com o papel social da escola e o lugar que a instituição ocupa. Se a gente acredita que a escola é o lugar onde as crianças precisam ficar quando os pais trabalham, estamos assumindo o papel de segundo lar, de substitutos da família, de tia. É preciso delimitar nossa atuação à esfera pedagógica. Em nenhum momento, estamos falando que não deva existir uma relação de parceria, carinho e vínculo com famílias e crianças, mas a relação precisa de contornos e limites, com cada um tendo clareza do seu papel e de sua atuação.


Na Educação Infantil, incluindo os contextos bilíngues, existe uma complementaridade entre educar e cuidar. Atuamos na construção da autonomia, no desenvolvimento socioemocional e cognitivo e na aquisição de segunda língua. Nossas ações se refletem na própria construção da identidade da criança. Mas não trabalhamos com cópias de caderno ou provas, o que torna nosso trabalho difícil de ser materializado.
Essa visão está profundamente entrelaçada com a ideia de que a criança não faz nada na escola antes de saber ler e escrever. Assim, todos os envolvidos na Educação Infantil não estão fazendo nada, as crianças ficam brincando e as professoras ficam vigiando. Se isso não reflete a sua concepção de docência, você precisa negar o título – e o papel – de tia, e se apropriar de ferramentas que permitam a você se colocar na comunidade escolar como a profissional competente e qualificada que você é. Uma teacher, não uma tia.
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