Acolher bebês e crianças que nunca frequentaram a escola é um desafio imenso. Crianças que vêm de outras escolas, monolíngues ou bilíngues, também precisam passar pela adaptação, que pode ser ainda mais difícil do que a daquelas que estão iniciando a vida escolar.
Para além de todos os desafios que este momento coloca – nova rotina, novos procedimentos, a separação dos cuidadores primários e a esfera coletiva se sobrepondo ao individual – o contexto bilíngue adiciona a questão da língua de comunicação. E, frequentemente, entre tantos fatores que a escola ou a professora não podem controlar, a língua acaba sendo escolhida como o componente a ser “aliviado” durante a adaptação. Assim, muitas escolas optam por fazer a adaptação em português e trocar para o inglês aos poucos ao longo das semanas.
Essa opção cria distorções interessantes, vamos explorar algumas delas:
- O vínculo criado entre professoras e crianças se estabelece em português
As crianças que são recebidas em português se acostumam com o ritmo do seu discurso, com as palavras que você escolhe e usa com mais frequência, as músicas que você canta para acalmá-las, as frases que você repete para confortá-las. Existe uma tendência de preencher todos os momentos com fala, de mediar as situações em que as crianças estão desestabilizadas com conversa, e a língua portuguesa está ocupando esse espaço.
- A professora estabelece sua imagem de falante competente de português
As crianças passam por um período em que escutam você falando português fluentemente. Você está usando uma língua que vocês todos têm em comum, elas te compreendem e sabem que você pode compreendê-las. O que nos leva à próxima distorção:
- As crianças resistem às tentativas de troca
Quando você decide trocar de idioma, existe uma quebra na comunicação que a criança não consegue elaborar, afinal, ela não tem entendimento de que está em um contexto bilíngue para aprender uma segunda língua. Por que uma pessoa que é compreendida pela criança decide trocar para uma fala que não é compreendida? A criança se pergunta – não de forma consciente – por que a comunicação foi interrompida, por que aquele adulto está escolhendo não ser entendido por ela. E ainda: por que este adulto agora está fingindo que não me entende mais, se eu já sei que ele é capaz de me entender?
- Crianças que chegam depois da semana de adaptação passam por um processo incompleto
Algumas escolas têm um procedimento de troca progressiva de língua – 100% português na primeira semana, 80/20 na segunda, 60/40 na terceira e assim em diante, até alcançar 100% em inglês. O que acontece com a criança que chega na terceira semana? A professora deve recomeçar no 100% português? Ou a criança que chega depois não precisa ou não merece passar pela mesma “oportunidade” de adaptação que foi dada às outras?
- A professora precisa planejar a troca da língua de forma progressiva e intencional, adicionando um trabalho fora de sala que não precisaria ser feito
É claro que você, como uma professora bilíngue, precisa ter um planejamento intencional em relação ao uso da língua e fazer escolhas sobre como vai ser o uso dessa língua em sala. No entanto, se você está transicionando e precisa usar 30% inglês, o que isso quer dizer? 30% de cada momento da rotina? 30% do tempo? 30% das frases? Como essa porcentagem se manifesta na sala e nas relações com as crianças?
- Os momentos da rotina, os objetos de sala e o vocabulário do cotidiano são estabelecidos em português e precisam ser alterados em curto período de tempo
Muitas crianças que nunca foram à escola estão conhecendo também novas palavras. Uma criança de três anos pode nunca ter ouvido ou nomeado “cola bastão” ou “aquarela”. Ela certamente conhece a palavra roda, mas não conhece o significado escolar da palavra, ou seja, o que é esperado dela quando você anuncia que é hora da roda. E depois dessa construção, em alguns dias, ela precisa trocar para glue stick, watercolor e circle time.
- Muitas vezes, uma língua artificial é colocada em uso
“Hey kids, it’s time de pegar as backpacks pra ir pro playground pra wait a mommy chegar!” Você começa a construir frases com a gramática do português com algumas palavras em inglês para facilitar o entendimento. Esse tipo de construção não é produtiva e impede a criança de acessar a língua de forma real. Sim, code-mixing é uma estratégia utilizada por pessoas bilíngues, mas ela deve ser utilizada pelas crianças apenas. Os adultos devem usar estratégias que permitam que a criança tenha input da língua real para que possa construir suas hipóteses com base no verdadeiro funcionamento da língua.
Assim, por mais contraintuitivo que possa parecer, a adaptação deve ser feita em inglês. Grande parte da comunicação necessária durante esse período está relacionada ao acolhimento e conforto das crianças, e muito desta comunicação passa pela linguagem não verbal. Seu tom de voz, seus gestos, sua postura corporal, suas expressões faciais, tudo isso vai comunicar à criança mais do que suas palavras. Quanto mais nova a criança for, menos ela se apoia em repertório verbal para se comunicar. Se você quer saber mais sobre como fazer um processo de adaptação acolhedor e totalmente em inglês, venha para o nosso minicurso Adaptação bilíngue!