Autora convidada: Lilian Montalvão do @educationmatters.lm
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que serve de referência para a construção dos currículos das instituições brasileiras de educação básica, estabelece que a alfabetização das crianças deve ocorrer entre o 1º e o 2º ano do Ensino Fundamental. Portanto, não, não é objetivo nem responsabilidade da Educação Infantil alfabetizar as crianças.
Uma das principais razões para isso é um receio legítimo de que a antecipação de práticas pedagógicas tradicionais de alfabetização do Ensino Fundamental acabe por ferir os direitos de aprendizagem das crianças da Educação Infantil, transformando essa etapa da educação em um mero treinamento para a etapa seguinte. Sim, ainda é preciso proteger as crianças da Educação Infantil da escolarização precoce.
Alfabetização e letramento – distintos indissociáveis
Mas, há uma questão mais fundamental nessa discussão. O que entendemos por alfabetizar? Seria apenas a aquisição do sistema alfabético de escrita? Apenas a decodificação das palavras?
Aqui, vale fazermos referência aos trabalhos da pesquisadora Magda Soares, referência na área de alfabetização e letramento no Brasil. De acordo com Magda, a aprendizagem da leitura e da escrita contempla dois processos cognitivos e linguísticos diferentes, mas que devem ocorrer de forma articulada: a alfabetização e o letramento. A alfabetização diz respeito à apropriação do sistema de escrita de uma língua alfabética (tal como o português, o inglês, o francês etc.) Isso inclui as convenções e regras desse sistema. Por exemplo, o sentido da leitura da esquerda para a direita e de cima para baixo, as combinações possíveis de letras, o uso de determinadas letras ou combinações (grafemas) para representar determinados sons (fonemas) etc. Já o letramento diz respeito ao desenvolvimento da leitura e da escrita contextualizados por meio de práticas sociais reais e que façam sentido para as crianças. Por exemplo, a leitura de histórias é uma prática social real e comumente presente na rotina de crianças.
Letramento emergente – construindo o caminho para a alfabetização
Então quer dizer que a Educação Infantil não tem nenhum papel na alfabetização? Ainda que não tenhamos como objetivo alfabetizar as crianças nessa etapa, podemos e devemos incluir, na rotina da Educação Infantil, práticas de letramento relevantes e adequadas à faixa etária e interesses das crianças.
As crianças nascem e crescem em um mundo letrado e estão permanentemente inseridas em uma cultura escrita. Elas presenciam familiares lendo e escrevendo bilhetes e recados, mensagens instantâneas no celular, e-mails, listas de compras, livros físicos e digitais, apenas para citar algumas práticas sociais mediadas pela escrita. Desse modo, não devemos sonegar às crianças o direito de explorar a cultura escrita também na Educação Infantil. Isso pode se dar por meio da escuta coletiva e da leitura independente de histórias; do trabalho com fichas com os nomes e fotos das crianças para serem utilizados na hora da roda para verificar quem está presente e quem está ausente, para dividir as crianças em pequenos grupos ou estações, para destacar os aniversariantes do dia etc.; da escrita e leitura da rotina no quadro e da verificação do progresso das atividades ao longo do dia; da leitura do cardápio do almoço (nas instituições onde a refeição é oferecida); da escrita coletiva de uma história tendo o professor como escriba; entre muitas outras possibilidades.
Já do ponto de vista da alfabetização como apropriação do sistema de escrita de uma língua alfabética, há uma série de habilidades e compreensões que as crianças precisam desenvolver antes de iniciarem formalmente seu processo de alfabetização e que devem fazer parte das experiências de aprendizagem da Educação Infantil.
Atividades como desenhar, colorir, pintar, recortar e quaisquer outras que exijam o movimento de pinça com os dedos, por exemplo, auxiliarão no desenvolvimento da coordenação motora, contribuindo posteriormente para a habilidade de segurar o lápis e deslizá-lo pelo papel de modo firme, mas suave o suficiente para conseguir escrever sobre as linhas e sem furar ou rasgar o papel.
Diversas atividades que já fazem parte da rotina da Educação Infantil podem contribuir para o processo que denominamos letramento emergente (no inglês, emergent literacy), ou seja, tudo aquilo que a criança deveria compreender ou desenvolver antes de iniciar o processo formal de alfabetização e letramento para que ele seja bem sucedido no futuro.
Uma das atividades da rotina mais propícias para o desenvolvimento do letramento emergente é a roda de leitura. Durante a leitura de histórias na roda, as crianças podem ser levadas a perceber como o livro é segurado e como as páginas são passadas. Isso dará a elas pistas muito importantes sobre o sentido da leitura nas línguas alfabéticas. Também é o momento de explorar os elementos paratextuais: título, autor, ilustrador, editora, imagens da capa, contracapa e miolo. Essa exploração contribui para a distinção entre grafismos e letras.
A roda de leitura também é um momento muito propício para o desenvolvimento da oralidade, da compreensão e para a aquisição de vocabulário, fundamentais para o sucesso da alfabetização e do letramento. É importante planejar perguntas que instiguem a curiosidade e a imaginação das crianças para serem feitas assim que o livro é apresentado e também em pausas estratégicas ao longo da leitura. Por outro lado, também é necessário planejar perguntas que possibilitem verificar se as crianças estão conseguindo acompanhar o desenvolvimento da narrativa. Outras atividades relacionadas que contribuem para o desenvolvimento do letramento emergente são atividades de reconto da história, sequenciamento de eventos da narrativa, escrita coletiva de uma nova versão ou final da história (tendo o professor como escriba), leitura independente (quando as crianças tendem a demonstrar como estão se apropriando da prática social da leitura de livros), entre outras.
Outras experiências de aprendizagem que contribuem para o desenvolvimento do letramento emergente são atividades com canções, parlendas e poemas com rimas e aliterações. Essas atividades ajudam a desenvolver a consciência fonológica na medida em que as crianças percebem os efeitos sonoros das rimas e aliterações e começam a manipular esses fenômenos linguísticos e brincar com eles.
Alfabetização em contextos de Educação Bilíngue
Pensando no contexto brasileiro de educação básica, a predominância de oferta de Educação Bilíngue se dá com pares de línguas alfabéticas – o português como língua de nascimento e uma língua adicional de prestígio (mais comumente o inglês). Sabemos que o termo Educação Bilíngue é um enorme guarda-chuva que abarca inúmeras configurações curriculares e de carga horária de aulas em língua adicional. Aqui, estamos considerando a concepção mais difundida de escola bilíngue, que é aquela em que as experiências de aprendizagem curriculares acontecem por meio de duas línguas de instrução.
Acreditamos, como afirmam Ofélia Garcia e François Grosjean, que o sujeito bilíngue não é o somatório de dois monolíngues e que o bilinguismo é um fenômeno dinâmico, ou seja, no cérebro bilíngue, não há uma separação entre os sistemas de signos da língua de nascimento e da língua adicional. Eles compõem um repertório linguístico único, sempre disponível, e são acionados dinamicamente a partir das necessidades do falante.
De maneira semelhante, a apropriação do sistema de escrita da língua adicional na infância não se dará de forma isolada do processo que está ocorrendo ou já ocorreu na língua de nascimento. As habilidades desenvolvidas em uma das línguas podem ser transferidas para a outra. Algumas serão facilmente transferidas, pois são idênticas. É o caso da direção da leitura nas línguas alfabéticas. Se uma criança já compreendeu que a direção é da esquerda para a direita e de cima para baixo, ao manusear um livro na língua adicional, ela provavelmente lançará mão desse conhecimento.
Em alguns momentos, a transferência exata pode não ser possível, mas aí surge uma oportunidade para testar hipóteses e eventualmente desenvolver uma nova compreensão. Por exemplo, a língua portuguesa apresenta muito mais transparência no sistema ortográfico do que a língua inglesa, que é mais opaca. De modo bem simplificado, isso quer dizer que a correspondência grafema-fonema é menos complexa em português do que em inglês. Quantas letras ou combinações de letras em inglês podem representar o som de ‘o’ aberto, como em door? É possível que uma criança que já iniciou a alfabetização em língua portuguesa, mas ainda não domina (totalmente) o sistema de escrita da língua inglesa, registre a palavra bola em inglês como bol em vez de ball, transferindo a lógica do sistema de escrita da língua portuguesa para a língua inglesa. E tudo bem. Aqui ela terá a oportunidade de desenvolver uma nova compreensão sobre o sistema de escrita da língua inglesa ou pelo menos de uma das representações ortográficas desse fonema em questão (que corresponde à letra ‘a’ em ball).
Sendo assim, independentemente do modelo de alfabetização escolhido pela escola para as suas duas línguas de instrução (simultâneo ou consecutivo), todas as habilidades e compreensões exploradas anteriormente quando discutimos o desenvolvimento do letramento emergente se aplicam também às diferentes línguas de instrução no contexto de uma escola bilíngue.
Isso não quer dizer, no entanto, que as duplas de educadores responsáveis por cada turma (LN e LA) na Educação Infantil bilíngue irão replicar em sua língua de instrução o que o outro faz na dele. Nem, por outro lado, que eles devem trabalhar de forma independente. Não se trata disso. Trata-se de ambos trabalharem juntos, com um planejamento integrado intencional, que inclua oportunidades para o desenvolvimento do letramento emergente em suas respectivas línguas e que essas trocas possibilitem que ambos compreendam como seus pequenos bilíngues estão se apropriando dos conhecimentos e das línguas em seus diferentes aspectos e como podem apoiá-los em seus processos de desenvolvimento e aprendizagem.
Outro ponto de atenção diz respeito aos métodos de alfabetização nas diferentes línguas. O sistema de escrita de cada língua, mesmo entre as alfabéticas, possui peculiaridades. Além disso, como língua e cultura são indissociáveis, os métodos de alfabetização também estão intrinsecamente conectados às concepções de língua, leitura e escrita da cultura na qual a língua é falada. Portanto, importar métodos de alfabetização e letramento diretamente de outras culturas para aplicar em uma escola bilíngue brasileira ou tentar replicar os métodos de alfabetização mais comumente utilizados no português para a alfabetização na língua adicional tem grande potencial para ser desastroso.
Assim como qualquer prática pedagógica, em qualquer modelo de ensino, a alfabetização e o letramento em escolas bilíngues precisam estar alinhados com as crenças e a filosofia da instituição, além de estar baseados em práticas sólidas e amparadas em evidências de pesquisas que, de preferência, tratem especificamente do contexto brasileiro de educação bilíngue. Na ausência ou escassez de pesquisas sobre o nosso contexto, é essencial analisar de forma criteriosa sobre as pesquisas existentes para outras realidades e refletir sobre elas, buscando identificar o que é aplicável aqui, o que não é e o que pode ser adaptado para ser aplicado. Isso possibilitará que a instituição tome decisões informadas e tenha mais chances de alcançar seus objetivos para a educação bilíngue.
Referências:
ESCAMILLA, Kathy et al. Biliteracy from the start: Literacy squared in action. Philadelphia, PA: Caslon Publishing, 2014.
GARCÍA, Ofélia. Bilingual Education in the 21st Century: A Global Perspective. West-Sussex: Wiley-Blackwell, 2009.
GROSJEAN, François. Neurolinguists, beware! The bilingual is not two monolinguals in one person. Brain and Language, v. 36, p. 3–15, 1989.
MEGALE, Antonieta (Organização). Educação Bilíngue no Brasil. São Paulo: Fundação Santillana / Richmond, 2019.
MEGALE, Antonieta (Organização). Escola Bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores. São Paulo: Fundação Santillana / Richmond, 2023.

Lilian Montalvão atua na área de ensino da língua inglesa para crianças e adolescentes há quase 20 anos, tendo trabalhado como professora, coordenadora pedagógica e consultora de área em escolas de idiomas e escolas regulares. Atualmente, Lilian dedica-se à autoria de materiais didáticos, à formação de professores e à consultoria educacional em contextos de educação bilíngue. Lilian é professora convidada do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Bilíngue da UFMG e atual líder do BRAZ-TESOL Bilingual Education Special Interest Group.
Ela é mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, especialista em Educação Infantil pela PUC-Minas e licenciada em Letras, língua inglesa, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui certificado de proficiência em língua inglesa (Cambridge Proficiency) e é também Educadora Parental em Disciplina Positiva, certificada pela Positive Discipline Association.
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